segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Obrigado, CN






No meu pequeno mundo, o espaço das scooters é frequentemente um campo de irracionalidade. Não uma irracionalidade dramática, no sentido económico ou despesista. Mas no sentido de agir ao contrário do que a pura lógica imporia. Há vários exemplos deste comportamento no meu curriculum scooterista. A começar no número de scooters por referência ao uso que delas faço. E a acabar em exemplos tão prosaicos como ter uma scooter fiável, como a Honda CN, e optar por vendê-la para ficar com uma LML, de duvidosa fiabilidade.


Este tipo de raciocínio é usado como contraponto às decisões diárias, na sua esmagadora maioria racionais. Quer por deformação profissional, quer até por formatação de perfil.
 
 
A ideia é que a (boa) irracionalidade é necessária para procurar manter os níveis de sanidade mental nos mínimos olímpicos, num mundo em que se trabalha demais, e em que estamos permanentemente a correr esbaforidos atrás de qualquer coisa, geralmente sem importância, e sem sabermos explicar muito bem porquê.


É por isso que no pequeno grupo de scooteristas que me são mais próximos e alinham regularmente no Lés a Lés, nos referimos frequentemente às nossas acções, enquanto scooteristas, como parecendo vindas de um mundo paralelo, ilógico e irracional, em que cada um de nós ocupa o seu lugar numa espécie de nave dos loucos. Porque não fazer o Lés a Lés de Lambretta, ou de Heinkel, ou de LML, ou de Honda Cub ? Quanto mais difícil e lento, melhor.


O que pode parecer só estúpido e pateta, pode gerar graus elevados de satisfação interior e catalisar doses de humor impensáveis numa participação racional.


É um pouco disto que também procuro no mundo das scooters.

Inicialmente a Honda CN 250 correspondeu a um desejo de participar no Lés a Lés de 2009 com uma scooter diferente das demais, suficientemente excêntrica para equilibrar um pouco as atenções dispensadas à Heinkel Tourist do Rui Tavares que comigo fez equipa.


Era suposto ficar seis meses, mas ficou sete anos. Porquê? Porque é talvez a minha melhor scooter. Cinco Lés a Lés em cima daquelas rodas, sem um único queixume. Sem me pedir nada mais do que a regular manutenção de uma máquina actualmente com 21 anos. Nada se partiu, nada deixou de funcionar, nunca fiquei na estrada. Que scooter ! Suspeito que não vá poder dizer o mesmo da LML. E desconfio que a LML não ficará tanto tempo como ficou a CN... 


Simplesmente concluí que três scooters me ocupam demasiado espaço. Na garagem e na carteira.  Mas sobretudo espaço mental. Saber que tenho e não uso, ou apenas o faço marginalmente, quase por obrigação, não é uma medida... racional. Neste caso cai na categoria da má irracionalidade.


No momento em que escrevo a CN já está nas mãos de um coleccionador português de motos inglesas. Mais uma excentricidade na sua colecção.


Do meu lado fica a boa memória e um álbum de fotografias. Obrigado, CN.





















Imagens: Bob (1, 6), Federação Motociclismo Portugal (2, 5)


sábado, 7 de fevereiro de 2015

Apologia de um Bell





Para um motociclista, o equipamento mais importante é aquele que protege a sua cabeça, o capacete. Neste caso particular a lei também concorda com o motociclista, porque não lhe faz nenhuma outra exigência de utilização de equipamento que não seja essa. Embora o legislador seja frugal nos requisitos, é bastante evidente que fez bem em afirmar o capacete como obrigatório. 


Provavelmente estarei em minoria nesta observação, mas devo confessar que tenho um certo fascínio por este acessório que salva vidas. Pela sua história e evolução, talvez como nenhum outro equipamento associado ao motociclismo e ao automobilismo de competição. Mas também como forma de expressão, essencialmente nas corridas.

Há trinta anos as estrelas que dominavam os bólides de Fórmula Um, ou que conduziam as motos de Grande Prémio, nunca mudavam as cores dos seus capacetes. Escolhiam-nas com critério e eram usadas ao longo de carreiras, muitas vezes extensas, com diferenças de desenho e tons mínimas.

O desenho naquele acessório funcionava como uma espécie de extensão da personalidade do piloto. A par da evolução do capacete, essa necessidade parece ter-se adensado a partir dos anos 70, porque todo o espaço disponível nos fatos e nas máquinas passou a destinar-se a publicidade. O capacete era o último reduto da individualidade de quem o usava e um elemento identificador fundamental para seguir uma corrida, mais até do que o número de competição.

Hoje não é assim. As estrelas mudam de desenho e cores praticamente de corrida a corrida (vejam os exemplos de Vettel ou Rossi), sem um fio condutor, e sem que se perceba bem as razões da mudança. É evidente que existe uma aceleração dos interesses comerciais, dirigidos ao consumo de "réplicas", mas suspeito que, para egos e carteiras como as que referi, essas razões não seriam fundamentais, acaso fizessem questão de manter a sua individualidade ao longo do tempo. Isto é, serem reconhecidos por uma imagem, uma ideia única de capacete.

Quem não se lembra do desenho do capacete de Senna ? De Freddy Spencer ? Ou, para os menos jovens, de John Surtees ? Ou de Jackie Stewart ? Desenhos simples, identitários, intemporais.

Quando hoje olho para os capacetes da maioria dos pilotos de Fórmula Um, são raros aqueles que consigo distinguir e seguir de corrida para corrida. E conheço todos os pilotos, como há trinta anos atrás. Esta tendência é hoje muito seguida pelos miúdos dos karts, para quem um capacete que não seja cheio de reflexos, brilhos, sombras e desenhos indecifráveis é uma espécie de atestado de menoridade na grelha de partida.

Isto é a competição hoje. E o motociclista de estrada ?







Desde a minha adolescência optei pelo quase anonimato e discrição das cores neutras. Com excepção do primeiro capacete, um básico Nolan - que personalizei com vinil antecipando toscamente, através da televisão e da Moto Jornal, uma réplica de Doohan que apareceria uns tempos mais tarde - usei sempre capacetes lisos, maioritariamente brancos ou pretos.

Sempre quis ter um Arai, mas por razões várias acabei por comprar exactamente o seu rival japonês, dois Shoei (!). Quando, muito mais tarde, finalmente comprei um Arai, tinha  alguns outros capacetes na garagem em uso. Acabei por utilizá-lo meia dúzia de vezes em cinco anos. Embora solidamente construído e confortável, achava-o pesado.

Decidi então colocar à venda dois capacetes integrais, que por razões diferentes quase nunca usava. Vendi-os com rapidez inesperada. Feitos os negócios, procurei, com calma, um capacete de qualidade. Decorado mas sóbrio, clássico mas seguro. E de aspecto diferente do que sempre tive, ainda assim susceptível de ser usado com a Bianca.

Depois de algumas buscas pelo mercado cibernético, rapidamente me saturei de propostas de capacetes que nada me dizem. É que o lado emocional conta no mundo das motos.

Revisitei então uma memória de uma ida à EICMA em 2010, onde me impressionaram dois capacetes integrais: os Blauer e os Bell Le Mans.

Aos meus olhos de hoje, os Blauer envelheceram mal, nenhuma daquelas decorações que me pareciam frescas e inovadoras me seduz hoje.

Pelo contrário, os Bell M5X Le Mans têm uma classe intemporal, e apelam às tais linhas simples e belas. Aos materiais de excelência, à leveza, à construção de topo, à pintura manual por artesãos, e à segurança conferida pelas cinco estrelas do teste Sharp. Não nego que o nome Le Mans, pintado à mão, também acrescenta e é parte da ligação emocional à história da era dourada da competição motorizada, com a qual me identifico.






Procurei na net e descobri, sem surpresa, que a Bell já não faz os Le Mans há bastante tempo. Eram edições limitadas do modelo M5X, que ainda se vende apesar de já existir o M6, mas não na série Le Mans, a única que me interessava. Esta só se encontra nos stocks de alguns comerciantes que não escoaram todos os exemplares, aquilo que habitualmente se designa pelo acrónimo NOS ou new old stock.

Depois de perder uma licitação por 10 libras num leilão, optei por visitar agentes Bell em Portugal. Na Triumph Lisboa fui encontrar um exemplar, o LMB, em "L", que veio a revelar-se uma luva. O comércio tradicional, uma conversa cordata e um desconto não menos simpático num capacete que já não é o último grito do mainstream Café Racer, fizeram o resto.

Há compras que nos deixam de cabeça feliz. Personalizada.