domingo, 21 de agosto de 2011

Linha Tua (II)



(continuação)

Rápida nota mental: no blusão estava apenas o cartão multibanco. Desço à Helix e inverto a marcha na direcção da estrada entre Verride e Reveles. Junto ao canal encontro pescadores de água doce, que não se incomodam com o meu escape quase livre a afugentar a pescaria. Pergunto-lhes se pescaram um blusão preto nas costas do canal. A negativa impele-me até à estação de Verride, última ficha de esperança para gastar.  A resposta é semelhante. Largo um cartão com o simpático chefe da estação. A GNR de Montemor o Velho é a próxima paragem. Sim, um blusão preto e cinzento, um cartão multibanco. Um telefonema depois está cancelado o cartão, e encerro também o capítulo, regressando à disponibilidade para o que há-de vir. À entrada de Montemor, máquinas agrícolas que já serviram noutras campanhas. 


Combustíveis, unidades monetárias e negócios. Tudo no pretérito perfeito.
















Com os imponderáveis, o dia ficou mais curto. Mas o plano era flexível. Estrada nacional até Coimbra, seguindo o braço do rio Mondego. A partir daqui, previa fazer a estrada da Beira, a N17, que desconfio que nunca fiz de fio a pavio. É esta a primeira vez. Paro junto ao Ceira para almoçar e aliviar a sensação de calor. Descobri um polar no fundo do saco que me permite rolar de braços tapados, única forma de não me transformar numa lagosta com a deslocação do ar quente em cima da scooter. Polar providencial para o frio à noite, guiado pela luz da Helix. Mas, por agora, enquanto o sol irradia torra-me o corpo e deixa-me desconfortável. O Verão é a pior estação do ano para andar em duas rodas, excepto entre o final da tarde e o amanhecer.

A estrada da Beira, que liga Coimbra a Celorico da Beira, alterna entre o piso aceitável e o sofrível. Está, em grande parte, a morrer devagar. Muito casario abandonado denuncia a falta de oportunidades, e a cada vez menor ocupação do espaço existente. O calor e algum desinteresse contribuem em medidas equivalentes para que a objectiva só volte a ser requisitada para registo de dois planos, um deles campestre e bucólico, mas ambos com a Serra da Estrela em fundo.





Já em Linhares da Beira, pequeno desvio e paragem para revisitar o belo Castelo, e beber uma água fria à sombra quando a temperatura do ar inicia a curva descendente.  





São quase cinco da tarde quando dou um curto descanso ao motor, na Estação de Celorico da Beira.




De Celorico a Foz Côa há novas opções rodoviárias, uma estrada de asfalto negro e deserto com nós ainda em acabamento, que há um mês atrás não quis experimentar a caminho de Lés a Lés. À saída de Foz Côa, a já clássica primeira imagem do Douro, ainda tímido a mostrar-se em fundo. 





Estou prestes a entrar na região onde lancei a âncora ao navegar no mapa, só que mais a leste. À minha frente, deixem-me que vos apresente: Estação do Pocinho.





O Pocinho é actualmente o fim da linha. Do Douro. Mas já foi mais. Já foi o início da Linha do Sabor. Linha de bitola métrica (ou via estreita), que teve o mesmo destino da Linha do Tua, e que pode descrever-se numa palavra: abandono.































Num dos posts do Lés a Lés, mostrei duas imagens do delapidado apeadeiro de Urrós, Linha do Sabor, sem carris, que é testemunho fiel da incúria e do lastimável destino da história da ferrovia portuguesa de via estreita.
     
O Pocinho ainda existe. É uma espécie de híbrido. A poente, uma estação digna, que funciona, absorve e expele gente. A nascente, uma estação morta, a quem o carril fugiu.













Viro costas ao Pocinho, e registo a saída numa imagem com a bela ponte metálica  ao alto, a cerca de quinhentos metros da estação.






Tinha muito para ver ainda. Olhando para o mapa com algum realismo, era impossível não constatar o desajuste entre o que planeara, e a pouca luz solar que me restava para o cumprir. Vantagens de um plano que admitia rasuras. Por falar em flexibilidade, estava na hora de ligar para a muito recente Pousada da Juventude de Alijó e saber da disponibilidade de estadia. Do outro lado da linha vieram notícias de baixa ocupação, o que me deixou tranquilo ao ponto de nem sequer formalizar reserva. O sono podia esperar.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Maçãs de Montanha - Ibero Vespa 2011



O cenário soberbo do alto do Monte de S. Domingos, de onde a vista alcança Lamego e a Régua, com o Marão em fundo, deverá ter inspirado o Vespa Clube de Lisboa para escolher Armamar como anfitrião do Ibero Vespa 2011. Armamar é terra que olha o Douro a partir do planalto. As paisagens de vinhedo em socalcos, a norte, contrastam com o ambiente beirão a sul, feito de searas e serras, com predominância dos afamados pomares da região, berço da sua maçã de montanha. Por coincidência feliz, a maçã trincada é também uma das imagens de marca da Vespa.

Estando de férias cá dentro, previa regressar ao convívio do Ibero Vespa depois de um ano de ausência, chegando cedo, e partindo também antes da caravana, no Domingo de manhã. Fiz a viagem para Armamar na alvorada do dia zero, uma sexta-feira útil, aprazível para fazer correr o tapete de alcatrão por baixo da scooter, acrescentando amigos à medida que ia parando nas estações: Daniel nas Caldas da Rainha, Marrazes e Sónia na Marinha Grande, e Mauro em Leiria, onde me esperava o melhor café do fim-de-semana no Ócio.

A conferir cor e graça a uma caravana com três Vespa, automáticas, e brancas (!), só uma Helix poderia evitar um improvável cenário de um quarteto de aspiradores brancos italianos. Fi-lo num acto de insubordinação consciente, com vista a evitar uma imagem de preocupante simetria nas estradas nacionais que acolheriam a nossa passagem. O facto de se tratar de um encontro Vespa não me coibiu de transgredir, até porque desconfio que o Vespa Clube de Lisboa gosta da minha Helix. Veremos se o clube aqui aparece para o desmentir.

Dos três dias oficiais do evento, desfrutei apenas de um, Sábado. Curto mas intenso, pois foi o suficiente para saudar alguns amigos de velhas caminhadas, conhecer e também rever a significativa representação de nuestros hermanos. Sentir-me em casa no camping,  participar no programa, desprogramar e improvisar um passeio com um grupo pequeno de amigos, descobrindo tesouros paisagísticos que o acaso, a beleza da região, e algum faro intuitivo nos proporcionaram.

Do cardápio fez também parte espremer a T5 do Paulo quase ao limite. Definitivamente não aconselhável a quem tenha acabado de provar os néctares da região! A marcha do tempo não me permitiu fruir mais, nem sequer pisar as variantes da N222, que tantas e tão boas curvas oferece a quem aprecia a sensação de inclinação em duas rodas.

Mas das minhas limitações de calendário não tem culpa o VCL, que mais uma vez fez um trabalho que merece ser saudado e enaltecido.

Arranquei de Armamar ainda na noite de Sábado, a solo, com a lua cheia por companhia, a clarear-me quatro horas e um quarto de viagem até casa, madrugada fora. Curto, mas bom. 
     








 











































sábado, 6 de agosto de 2011

Linha Tua




Há duas décadas que venho ouvindo falar da Linha Ferroviária do Tua. Só por uma vez lá tinha estado, em 1990. Mas nunca cheguei a percorrer, de comboio, um único dos cento e trinta e três quilómetros da linha, que liga a Foz do Tua - que desagua no Douro - a Bragança. Ameaçada de morte, a Linha está em coma profundo desde 1992, quando se iniciou a amputação de troços que lhe quebraram parte do imenso encanto, e lhe feriram a coerência do traçado inicial. 

Um fim de semana livre foi a oportunidade certa para empreender esse passeio, mas agora para revisitar o espaço e o seu abandono. Talvez pela última vez, atentos os avanços registados na futura barragem, que irá submergir boa parte da Linha, ou do que dela resta, e do esplendoroso Vale do Tua.

A viagem não tinha um plano fixo, como prefiro. Sabia que ia dispensar o campismo, e por isso optei pela Bianca, cuja capacidade de carga instalada é muito inferior à da Helix. Calculei a bagagem com essa limitação em mente, mas na garagem rapidamente percebi que não conseguiria levar o que pretendia na Bianca, a começar pelo imprescindível equipamento fotográfico. O que me fez regressar à minha grande scooter de viagem, como gosto de lhe chamar.

Pelas seis da manhã de sábado já estava na estrada, a caminho do norte. É a minha hora de saída por excelência, não há trânsito e a luz apresenta-se em slow motion, parece mais lenta do que realmente é, até aparecerem os primeiros raios de sol. Aproveito para parar com meia hora de viagem e tirar a máquina do saco pela primeira vez, atraído pelas texturas e cor reflectida no cenário.








Por cima do pequeno road book com distâncias e referências sobre a Linha do Tua, cuidadosamente enrolado no respectivo suporte, assinalei com um post it amarelo um local que me escapa há dois ou três anos, e que pensei que finalmente conseguiria ter tempo para ver no caminho.







Trata-se de um apeadeiro que se consegue vislumbrar na partir de um dos viadutos da A17, não muito longe da saída para a Figueira da Foz. Reveles é o seu nome. Estranho nome, que mal aparece no meu mapa e fica envolto em campos de cultivo, em regra arrozais. Estamos perto do Mondego.

Uma das regras simples que me obrigo a seguir e que faz parte do ritual do passeio é a de proibir o uso de GPS. O google maps serve apenas para explorar previamente, e em casa, o potencial interesse de uma certa região. A partir daí, mapa. À antiga. Dobrável, em papel, prefiro-o à voz entediante da máquina, e ao patético e titubeante movimento da seta no ecrã.

Além disso, o aparelhómetro pede-me sempre um destino. Eu não estou interessado no destino. O destino não é mais do que um pretexto para conhecer o caminho. O GPS não percebe isto, por mais que lhe tente explicar. Ainda por cima irrita-se e repete-se quando eu próprio quero comandar o meu destino, o que me parece elementar. Julgo que concordarão comigo se disser que o tal GPS é um aparelho que incita a passividade. Conceito que rima mais com automóvel do que com scooter.







As margens do Mondego recebem-me através de linhas rectas que recortam a régua e esquadro o terreno fértil. Ainda é cedo, tenho todo o dia pela frente e a paisagem reclama um olhar mais abrangente, preciso de subir a minha cota para uma perspectiva que me deixe ver o horizonte, rodando sobre o meu eixo trezentos e sessenta graus.

A grande angular distorce a imagem, mas permite-me traduzir-vos apenas um pequeno lance do movimento. Lastimo, mas para praticar este exercício não podem estar onde estão, em frente a esse ecrã. É necessário ir lá. 




Ainda não tinha chegado ao apeadeiro que me serviu de pretexto para lançar a bússula nesta direcção, e já estava a ser presenteado com cenários inéditos, em modo bónus. É necessária alguma disponibilidade de tempo para estarmos verdadeiramente receptivos à descoberta. Para observar e aceitar o que se nos apresenta, interagindo. Ou simplesmente contemplando. O que, em certo sentido, já é uma forma de interacção. 




A posição da luz solar denuncia o horário matinal arrojado, mais adequado ao descanso de um sábado na cama. Sinto-me leve. Para contrariar a manhã já quente, decido tirar o blusão de cordura, que habitualmente prendo com os esticadores na tampa da top case, mesmo em viagem.








Reveles é um apeadeiro de horizonte largo. Não há ruído, e o movimento é aparentemente ausente. Apenas um eco longínquo de uma máquina agrícola me distrai, trazido pelo vento fraco. 





Gosto do desenho da língua do abrigo. Austero e grave, é suavizado pela curva descrita pelos carris. Enquanto reparo, chega um carro que apeia uma mãe e um filho, sinal de passagem iminente de comboio. 









Não verei  o comboio aqui, porque decido perder-me pelos acessos aos campos. Ao longe vê-se uma comprida ponte metálica, caixa cinzenta repleta de traves e aparentemente frágil para onde a composição se lança em ritmo mais compassado.



Regresso ao canal contíguo ao caminho onde parei para ver a passagem do combóio, que apreciei em duas paragens seguidas e uma ponte, a partir do mesmo ponto de vista, e ao longo de uma meia dúzia de minutos, até desaparecer do meu campo visual. Olho para a Helix através da Nikon e disparo o obturador.
 
 




Reparo então que falta algo na tampa da mala. O blusão (!?!). Volto agora ao ecrã da Nikon, procurando por uma imagem em que o encontre para definir o trajecto em que o perdi. São nove e meia da manhã de sábado, estou a cento e cinquenta quilómetros de casa, no início de um fim de semana a caminho de Trás os Montes, de scooter, de t-shirt e sem o cartão multibanco. O blusão, não o encontrei.