sábado, 26 de junho de 2010

Lés a Lés 2010 – Atracção pela Odisseia – Parte II




(continuação)

Dormir bem é fundamental para se poder acordar com a disposição certa. É, aliás, uma medida de gestão de energia fundamental.

Concentrar tanta estrada praticamente em dois dias, com mais de um dia inteiro em cima da scooter, obriga a um esforço que não é usual para viajantes ocasionais. O Lés a Lés não é tarefa para heróis, mas é aconselhável usar a cabeça, e gerir o calendário e o passeio com inteligência.

Beber álcool, por exemplo, é uma má ideia. A organização desincentiva o álcool, e fá-lo com acerto. Dormir boas horas de sono também retempera as forças. Dentro do possível, foi o que fizemos.

Escolhemos ficar a cerca de dez quilómetros de Sintra, numa bela casa de turismo de habitação cheia de história com vista para a Serra.

De manhã, pouco depois das cinco horas, a Serra ainda se vestia de neblina. Engolimos um princípio de pequeno almoço apressado e desencarcerámos as scooters da garagem improvisada.

Afastei o sono quando fiz passar o NEXX pelas orelhas e acordei o motor da fiel SYM CityCom. “Nunca te esqueças de ter uma postura cavalheiresca na estrada”, li de relance no início do road book desta Segunda Etapa, enquanto calçava as luvas. Veio-me à memória uma frase que nunca esqueci e que li num catálogo de papel das primeiras Honda VFR, talvez há vinte anos, quando ainda nem carta tinha: “A cortesia identifica o condutor com estilo”. O slogan é tão eficaz que ainda hoje me lembro dele. Também é assim que se passam mensagens e formam motociclistas…

Palanque para o controlo: saímos ligeiramente atrasados, e algo apreensivos com os avisos à extensão, no tempo, que a jornada ia importar. Contrabalançava isso com o conhecimento de boa parte do percurso matinal, o que me descansava quanto à navegação.

E a manhã começou com a descida a Colares a caminho da Praia das Maças e Azenhas do Mar, onde tínhamos à nossa espera um calórico pequeno almoço pelas seis e vinte. O dia ia acordando e as minhas memórias de infância iam sendo projectadas sobre a linha de comboio que liga Sintra à praia.







O percurso estava estudado com cuidado e imaginação, de tal modo que consegue sempre encontrar caminhos e alternativas que eu não conheço, mesmo quando me sinto quase em casa. Até ao Palácio Nacional de Mafra fomos seguindo o velho princípio deste passeio. Adoptar o roteiro mais tortuoso. E mais saboroso...



Do Palácio para mais um troço do velho Rali de Portugal, Gradil, com passagem à porta da Tapada de Mafra. Já fiz quilómetros nesta estrada a pé, conheço cada curva de olhos fechados. Sensação nova para mim num Lés a Lés, e que resulta do facto de o passeio pisar o Oeste pela primeira vez também.


Chamo o Rui pelos intercomunicadores para lhe dizer que ali à esquerda, a pouco mais de cem metros, entre colinas verdes, está o vale que serve de cenário a muitas das minhas fotografias da série Railroad Crossing no Offramp...

Ainda são oito da manhã, estamos em Vale Banfeito e já nos é servido, à ciclismo, com direito a saca e tudo, um reforço alimentar. Imediatamente antes de subirmos a um planalto em terra, mais meia dúzia de quilómetros técnicos desta vez com muitas regueiras a acrescentar alguma dificuldade, mas sem ribeiros. Fácil para a SYM.






Estamos a caminho de nova serra, desta vez a minha querida Serra de Montejunto, com a sua belíssima colónia de pinheiros mansos, quando nela entramos pelo lado de Vila Verde dos Francos, depois do primeiro planalto. Tínhamos controlo no cume, junto à Capela da Senhora das Neves, e o dia estava limpo, para desvendar a vista de quase setecentos metros de altitude, ponto mais alto da Estremadura.




A descida não se fez pela Abrigada – outro tesouro - , mas sim por Pragança, com a escolha da bela N366 até apontarmos agulhas a Rio Maior e as suas marinhas de sal, que aproveitámos para visitar, picando aí a tarjeta em mais um controlo.


Ainda nem são dez horas e já estamos a trepar novo Parque Natural, desta vez as Serras de Aires e Candeeiros. Algum pó aconselhava a guardar boas distâncias, aqui o chão é branco, de rocha calcária, e em redor as pedreiras vão abraçando de morte a Serra.




Daqui para Porto de Mós tirámos o pó branco aos pneus, seguindo em bom ritmo até Fátima, por Pia do Urso, e de Ourém até à Ribeira de Alge, afluente do Zêzere, mais um local que conheço bem graças aos Ralis.

Ligámos Figueiró dos Vinhos a Castanheira por outra estrada que já pisei, aproveitando para colar o acelerador da Citycom e acompanhar alguns participantes num grupo de BMW, imaginando-os incrédulos quando viam nos espelhos uma scooter de roda alta de médio porte a morder-lhes a roda traseira.



O almoço era na Lousã, mas para o merecermos tínhamos que trepar a Serra. Vegetação fechada, de vários tons de verde, ameaça invadir a estrada, tornando-a ainda mais estreita. Estou em simbiose perfeita com a SYM, não me canso destes encadeados de curvas e da forma como ela sai de uma para se encaixar na seguinte. Até parece estar no seu terreno de eleição.


Já a descer, o céu fecha-se e carrega as cores das aldeias de xisto. Candal é a mais visível e exuberante, mas também Talasnal e Vaqueirinho estão assinaladas.



Depois de almoço seguimos na rota de Foz do Arouce, Barragem de Mondelim e Mortágua. O passo seguinte seria o Caramulo, mais uma Serra, mas atrasaria demais o já longuíssimo dia de viagem, e a organização decidiu suprimir a subida.

Já levávamos dez horas de maratona quando encostámos para ver o Vouga, na ponte de São Pedro do Sul e suas Termas. Dez minutos de paragem, não mais. Ainda faltam quatro horas de curvas até ao Porto!


Em passeios como este, o ritmo é muito importante. Assim como o bom entrosamento com o nosso companheiro de equipa. O Rui Tavares confirmou, como se ainda fosse preciso, ser a companhia ideal para a odisseia, sempre de espírito aberto e pronto para distribuir boa disposição quando os quilómetros demoram mais tempo a rolar no odómetro. Sim, porque nem todos os quilómetros no Lés a Lés são de prazer. Também os há em relativo sacrifício, quer seja pelo cansaço, pela ausência de posição confortável em cima da scooter – felizmente poucos com a SYM - ou pela monotonia de alguns troços, impossível de evitar num percurso de mais de mil quilómetros. Por vezes o segredo está em escolher o ritmo de conforto, nem rápido, nem lento, de modo a não adormecer ou cansar demasiado.

Aqui, prestes a iniciar a subida à Freita, fez-me bem parar. Subi com novo ânimo para uma parte da etapa que talvez tenha sido a maior surpresa. A Serra da Freita, agreste, mas também fértil, árida mas com bonitos bosques, isolada, mas onde ainda sobrevivem aldeias no cume da montanha. Os desafios aqui são outros.








Descida a Vilarinho e a Manhouce, com um curto intervalo para lanche. Em direcção à Frecha da Mizarela, salto livre de setenta metros do Rio Caima, a maior queda de água de Portugal Continental.



Não conhecia a descida a Arouca, mas decidi aumentar o ritmo e espremer tudo o que os travões da Sym conseguiam dar, tentando perceber quando iriam perder eficácia e sobreaquecer. A descida parecia interminável, tal como a capacidade de escoar calor do único disco frontal, bem coadjuvado pelo seu homólogo traseiro, ambos cumprindo a função com total distinção.

Depois de Arouca deparámo-nos com mais uma overdose de curvas: trezentas e sessenta e cinco em ligação a Castelo de Paiva, com o Rio Paiva do lado direito. Vinte e três quilómetros de piso difícil e estrada algo suja, a exigir atenção e bom ritmo. Em Castelo de Paiva estava instalado o décimo nono controlo secreto. Em Entre-os-Rios pude ver a nova ponte, que substituiu a Hintze Ribeiro, de má memória.


Estávamos a cerca de uma hora do Porto, com treze horas em cima da espuma do banco da CityCom. Moído, mas ainda inteiro, e com reserva para esticar um pouco mais o punho direito na N108, que liga a Régua ao Porto, sempre entrecortada por alguns desvios para descida ao Rio Douro, um deles para o controlo secreto final.

A entrada no Porto fez-se sob cinco pontes: Freixo, S. João, D.Maria, Infante e D. Luís. Já em jeito comemorativo, o road book levou-nos por alguns dos pontos mais carismáticos da capital nortenha, com destaque para a Praça da Ribeira ou a Torre dos Clérigos. A chegada estava instalada em plena Avenida dos Aliados, palco nobre para nos receber em final festivo, com as máquinas guerreiras trepando a rampa da Câmara antes do palanque final.




Foi duro, mas mais uma vez valeu a pena. Devo agradecer ao meu companheiro de equipa, Rui Tavares, pela companhia e solidariedade. À Red Moto, importador da SYM em Portugal, por ter aceite o desafio de submeter a CityCom 300i a uma tortuosa viagem mais talhada para outras montadas. À NEXX, pela cedência dos capacetes X30, para o Rui, e XR1.R para mim. Provaram que se pode inovar, fazendo bem e conquistando o mundo a partir de Portugal.

A aposta da organização foi ganha e provou que os receios dos mais pessimistas não se concretizaram. É possível fazer o Lés a Lés com partidas e chegadas no litoral, fugindo aos percursos óbvios da nossa bela faixa costeira, sem descaracterizar a essência do passeio. Apesar da superação desse desafio, para o ano gostava que se repetissem escolhas mais interiores. Ao que sei, estão acertadas com autarquias as partidas e chegadas até 2013. Sinal de saúde para um evento que vale a pena acarinhar, e em que continuo a sentir-me bem. Só não sei em que scooter em 2011…

2 comentários:

TodayAdventure disse...

Magnífico relato e excelentes fotografias de um grande evento motociclístico. Mesmo para alguém, como eu, que acha que o LaL comprime em tão pouco tempo, demasiados quilómetros, esta crónica mostra como é ainda assim, a oportunidade para revelar a muitos um Portugal desconhecido que pode inspirar futuros passeios.

Zé Paulo.

Rui Tavares disse...

Mais com saudade do que com curiosidade, revivi aqueles magnificos dias de mais este Lés a Lés. Ficam-me na memória as curvas a acompanhar-te, o bom ritmo que mais uma vez soubemos respeitar e a liberdade. De viajar, de conhecer.
Obrigado por seres o companheiro de equipa ideal mais uma vez.